Cooptação do Estado, tragédia ambiental e esquecimento: Os ingredientes da mineração no Brasil

A dos anos da pior tragédia ambiental de sua história, o Brasil continua com um modelo irresponsável de embalses da indústria mineira.

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A dos anos da pior tragédia ambiental de sua história, o Brasil continua com um modelo irresponsável de embalses da indústria mineira.

No dia 5 de novembro de 2015, o Brasil protagonizou a pior tragédia ambiental de sua história. Duas barragens de rejeitos de mineração da empresa Samarco S.A, joint venture da BHP Billiton e da Vale, romperam, deixando um rastro de destruição sem precedentes. A tragédia ocorreu em Mariana, no coração do estado de Minas Gerais, cuja história sempre esteve marcada pela mineração. Os rejeitos transformaram os povoados de Bento Rodrigues e Paracatu, na zona rural de Mariana, em cidades fantasmas. Várias nascentes foram soterradas e o Rio Doce, um dos principais corredores hídricos do sudoeste brasileiro, transformou-se em um mar de lama de cerca de 850 km entre Minas Gerais e o estado do Espírito Santo, chegando finalmente à ilha de Abrolhos.

Em um contexto de absoluta assimetria econômica entre uma empresa de mineração e a região onde opera, é a população mais vulnerável que assume o custo de uma tragédia cuja dimensão era desconhecida até que a avalanche de lama invadiu suas casas, rios e comunidades. De acordo com os relatórios feitos pela Samarco para a obtenção das licenças das barragens, os rejeitos atingiriam 3,5 quilômetros em caso de ruptura. Porém, entre Mariana e Abrolhos, por onde a lama tóxica foi sepultada, a distância é de 850 quilômetros.

A Samarco segue sendo onipresente, política e economicamente, em Mariana e nas cidades vizinhas. Desde que suas operações foram suspensas, em novembro de 2015, a RENOVA – uma fundação privada criada pelas empresas causadoras do dano, após um acordo com os governos federal e estadual (de Minas Gerais e do Espírito Santo) – tornou-se a principal empregadora da região. Deve-se notar que a RENOVA iniciou suas operações sem qualquer consulta prévia à população atingida.

A RENOVA vem operando ao longo da Bacia do Rio Doce para implementar programar de reparação, projetados nos bastidores pelas empresas responsáveis (Samarco, BHP Billiton e Vale) e as autoridades estatais envolvidas. O primado dos interesses corporativos sobre os da população atingida é evidente até mesmo na estrutura funcional da RENOVA. A fundação não tem um único representante dos atingidos em seus fóruns deliberativos e a maioria de sua equipe vem das indicações das empresas que patrocinaram sua constituição.

Para entender a dinâmica da impunidade corporativa no Brasil, antes e depois de uma tragédia como a de novembro de 2015, basta observar a forma como o setor de mineração financia processos eleitorais nos diferentes âmbitos regionais. Samarco é a principal financiadora das campanhas para cargos de eleição popular em Mariana e na região vizinha, com o qual há um forte apoio político local para que a empresa volte a operar. Na esfera estadual, a cooptação política da Samarco, da Vale e de outras empresas de mineração não mudou desde novembro de 2015. Poucas semanas após a tragédia, foi proposto criar uma Comissão Parlamentar, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, para investigar o que aconteceu em Mariana e determinar responsabilidades. Depois de um intenso lobby das guildas mineiras, a Comissão Parlamentar tornou-se uma “Comissão Extraordinária de Barragens”, supostamente dedicada a discutir um novo marco legal para licenciamento e fiscalização ambiental em Minas Gerais.

Neste contexto, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais elaborou um projeto de lei, no âmbito de uma campanha conhecida como “Mar de Lama Nunca Mais”. Apoiado por mais de 56 mil cidadãos, este projeto (PL 3.695/16) foi apresentado à Assembleia Legislativa de Minas Gerais, a fim de estabelecer parâmetros mais rigorosos para a concessão de barragens no estado. Esses parâmetros incluem a exigência de consultas amplas às comunidades potencialmente atingidas; garantias financeiras prévias, para possíveis indenizações; e o uso de tecnologias seguras de contenção de resíduos.

Se tais salvaguardas existissem antes de novembro de 2015, as autoridades estatais poderiam ter exigido, com mais rigor, que a Samarco informasse o público sobre como proceder em casos de rompimento. Os habitantes de Bento Rodrigues e Paracatu nunca haviam sido informados sobre o risco potencial de perder suas casas devido à eventual ruptura das barragens, mesmo convivendo com as atividades da empresa há décadas. Algumas pessoas que perderam suas casas eram ex-funcionários da Samarco ou de empresas fornecedoras e desconheciam a destruição que poderia resultar do rompimento. Deve-se notar que a Samarco não tinha sistemas de alarme ou planos de evacuação, o que contribuiu para as 19 vítimas fatais, enterradas pela lama que varreu Bento Rodrigues do mapa de Minas Gerais e Brasil.

Uma das principais causas da tragédia de Mariana é a vigência de um modelo de barragem proibido em outros países, devido ao alto risco operacional que implica. Conhecido como barragem “à montante”, este modelo consiste na ampliação da barreira de contenção através de vários degraus laterais, nos quais o próprio rejeito de minério é usado como material de contenção. Infelizmente, a escolha de um modelo mais barato, porém muito mais arriscado, agravou-se devido à incapacidade do governo federal de ativar a institucionalidade necessária para fiscalizar as barragens em operação no país. Em 2014, o então Departamento Nacional de Produção Mineral, substituído pela Agência Nacional de Mineração em julho de 2017, havia inspecionado apenas 141 das 602 barragens de mineração existentes.

A política de fiscalização após a pior tragédia ambiental do país parece ser a do esquecimento. De acordo com um relatório publicado recentemente pela Agência Nacional de Águas, das 22.920 barragens (incluindo mineração e outros setores) no país, apenas 3.174 contam com responsáveis técnicos e legais devidamente identificados. Ou seja, existem 19.746 barragens – muitas delas de médio ou mesmo grande porte – que, em caso de ruptura, não se sabe exatamente quem responderá legalmente frente aos atingidos. O mencionado relatório indica que das 3.691 instalações que contam com uma análise de risco recente no país, 1.091 são classificadas como de alto risco de deslizamentos de terra. No que se refere ao potencial de danos à população localizada na zona de impacto das barragens, dos 4.114 diques examinados, 2.053 apresentam um alto potencial de danos, devido à presença de comunidades ou cidades inteiras sob as barragens, ou à natureza dos resíduos que poderiam ser despejados em áreas habitadas.

Diante de um padrão de omissões e imperícias acumuladas ao longo de vários anos, os cidadãos tentaram influenciar o debate público para que um modelo mais responsável para a construção e gestão de barragens seja adotado no país. No estado de Minas Gerais, por exemplo, 56 mil cidadãos exigiram a adoção de um novo marco legal para evitar tragédias como a de Mariana, através do projeto de lei de iniciativa popular chamado de “Mar de Lama Nunca Mais”. Apesar disso, outro projeto de lei está em discussão na Assembleia Legislativa (PL 3676/2016), que, embora tenha alguns requisitos adicionais para o quadro legal em vigor no estado, é muito mais permissivo do que o projeto de iniciativa popular. Deve-se lembrar que, desde 1986, ocorreram pelo menos 6 rompimentos de barragens de mineração em Minas Gerais, com um total de 33 mortes e centenas de milhares de pessoas atingidas.

No nível federal, tramita há alguns anos um projeto de Código de Mineração, cujo texto foi amplamente criticado pela sociedade civil. Nem a crítica da cidadania nem o trauma de Mariana foram suficientes para evitar a relação tóxica entre as empresas de mineração e o Congresso Nacional. Dezessete dos 34 deputados federais que compõem o principal comitê da Câmara dos Deputados que delibera sobre o novo Código de Mineração, contaram com o apoio de grandes empresas de mineração para financiar suas campanhas eleitorais.

Embora esta relação tóxica prediz o futuro da mineração no país, 300 famílias de Bento Rodrigues e Paracatu permanecem expostas a condições de vida degradantes. Este número reflete apenas a situação dos habitantes dos dois povoados adjacentes às barragens da Samarco. Se considerarmos todo o rastro de destruição causado pela irresponsabilidade da empresa e das autoridades estatais, a população de Mariana, Minas Gerais e do Brasil deveria se perguntar se os riscos inerentes ao modelo atual de mineração são ética e ambientalmente aceitáveis. A julgar pelo que está acontecendo na Câmara de Mariana, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e na Câmara dos Deputados do Brasil, a resposta a esta questão é muito simples: “esqueçamos a tragédia de 5 de novembro de 2015 e celebremos o desenvolvimento promovido pela Samarco, Vale e outras empresas que financiam nossas campanhas eleitorais “.

Daniel Cerqueira é Oficial de Programa Sênior na Fundação para o Devido Processo (DPLF, em suas siglas em inglês). Letícia Aleixo é orientadora da Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais e assessora técnica pelo Projeto da Fundação Ford/MPMG para o Caso Samarco.

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